Marilea de Almeida
3 min readMar 17, 2021

--

Ensaio

Voz: bússola e desorientação

A voz é algo delicado tanto do ponto de vista fisiológico como do ponto de vista afetivo. É algo que usamos o tempo todo, mas que não prestamos muita atenção. Quase nunca ouvimos o que nossa voz está nos dizendo. Todo corpo fala. Porém, em sociedades cuja língua oral é a dominante, a voz falada adquire relevância social. Em termos de relações de poder, nem todo mundo está autorizado a dizer tudo, do seu modo, o tempo todo e a todo momento.

Para mim, o início da consciência sobre as complexidades em torno voz começou por meio das aulas de canto. Eu tinha vinte anos. Naquela época, encarava os exercícios vocais como se fosse uma atleta: era preciso fortalecer a musculatura para realizar boas performances. Meus primeiros professores trabalham com técnicas do canto lírico. E eu cantava e cantava: na igreja, no coral da universidade, nas reuniões familiares, nas festas das escolas. Apesar dessa entrega, era comum tudo correr bem nos ensaios, mas quando chegava o momento da apresentação: a respiração falhava, eu perdia o compasso, a afinação não convencia. Isso me deixava angustiada, insegura e com raiva. Naquela época, achava que eu errava porque ainda não dominava totalmente a técnica. Aqui, estava presente a ideia ingênua de que o domínio técnico tem o poder de controlar tudo. Tinha a necessidade de dizer, mas não me sentia autorizada a fazê-lo.

Mesmo assim, criar modos de me expressar foi se transformando em algo quase vital. Por isso, continuei buscando meios diferenciados de dizer. Nesse caminho, aprendi Língua Brasileira de Sinais, uma língua gesto-visual-espacial, que me ofereceu novos campos semânticos, novas relações No mesmo período, estudava canto e música. Até aquele momento, pensava que a impossibilidade e o erro fossem ditados pelo domínio de uma técnica, desvinculando a dimensão psicológica das dobras sociais e históricas.

No meio do caminho, um acontecimento revelou que o fato da minha voz habitar um corpo negro e feminino implica na condições de possiblidades do dizer e na aceitação da minha voz. Isso aconteceu, em 2007, quando comecei dar aula em uma universidade privada. Aquela altura, eu já tinha 12 anos de experiência no magistério com Ensino Básico, especialmente com a educação de pessoas surdas. Esse começo na universidade foi vivenciado com uma mescla de empolgação e pânico. Meus temores giravam em torno da insegurança com o conteúdo e do manejo das aulas para pessoas adultas. Jamais poderia imaginar que minha voz me sabotaria, já que, apesar do medo, eu tinha os recursos técnicos para projetá-la. Além disso, me preparava com muito rigor para as aulas, estudando por intermináveis horas. Ledo engano. Nas primeiras aulas, minha voz quase não podia ser ouvida. Os alunos e alunas precisavam se esforçar muito para escutá-la. O medo pessoal foi intensificado pela rejeição de uma parcela dos estudantes, que queixavam-se da qualidade das minhas aulas. Diante da peleja emocional e da falta de acolhimento daquela parcela dos estudantes, a dificuldade física apareceu. Eu estava com medo de ser ouvida. Foi ali que percebi que precisava ser mais generosa comigo.

Além da terapia pessoal e das reflexões proporcionadas pelo feminismo negro, incluo minha a passagem pelo teatro como um evento importante no processo de acolher minhas limitações e desfrutar dos recursos já construídos. No teatro, experimentei que tudo vocaliza, até o silêncio. E que a técnica pode ser transformada em uma busca de autoconhecimento. Hoje, gosto de pensar sobre minha voz conforme traduziu Caetano Veloso: minha bússola e minha desorientação.

  • *********

Este ensaio nasceu de uma conversa com Wanessa Tibúrcio.

--

--

Marilea de Almeida

Professora e Pesquisadora. Doutora em história. Ensaios, poesias e contos sobre encruzilhadas, entre lugares e o meio do caminho.