Autoestima e o povo negro em bell hooks
Prefácio do livro Rock my soul: Black People and Self-Esteem , de bell hooks
Tradução: Mariléa de Almeida Revisão: Aaron Jaekel
A parte interna: Autoestima hoje
Alguns anos atrás, uma revista nacional fez uma reportagem de capa com o título O QUE ACONTECEU COM A AMÉRICA NEGRA? Eu folheei as páginas na banca de jornal, passando o olho pelas estatísticas sobre desemprego, mães que dependem da assistência governamental, taxas de divórcios, dependência de drogas, e larguei a revista, reconhecendo que as histórias escolhidas para contar sobre a vida dos negros americanos eram aquelas que apoiariam e afirmariam a noção de que havia um escasso interesse com o que estava acontecendo com a vida negra. Como crítica cultural que escreve sobre representação da negritude nos meios de comunicação de massa, eu fiquei chocada — enfurecida — com essa construção sobre a negritude. Eu me senti impotente perante os brancos poderosos que comandam a revista, já que para vendê-la podiam decidir anunciar o desaparecimento, a morte de uma raça inteira.
Em tom autocongratulatório, a essência das narrativas era que pessoas negras têm se autodestruído, cometendo um genocídio cultural coletivo, “nós demos a eles direitos e oportunidades e veja o que eles fizeram com isso.”[1] Semelhantes posições eram comuns nos seguimentos que reagiam contra a ação afirmativa. Uma vez que você anuncia publicamente que as pessoas estão culturalmente apagadas, que não estão mais lá para serem olhadas, contempladas ou comentadas, você se livra da responsabilidade. Você anuncia a ruína delas e conta para o mundo que elas escolheram esse destino — um desaparecimento passivo, autossabotagem silenciosa, suicídio simbólico. Com audácia você revela a vergonha secreta das pessoas negras. E a fonte da vergonha era que as pessoas negras têm feito tão pouco com tanta coisa indo para elas. E não era para culpar o racismo.
Se o racismo não era o culpado pela falta de progresso na vida negra, então o que poderia ser o problema? Ninguém nos últimos tempos parecia ser capaz de responder essa questão. Embora eu nunca tenha aceitado a noção de que as pessoas negras haviam desaparecido, comecei imaginar por que nós não estávamos fazendo mais e por que com mais oportunidade e sucesso em todas as frentes, havia tanto sofrimento na vida das pessoas negras. O sofrimento não estava limitado às pessoas pobres e de classe baixa. Não estava relacionado o quanto de dinheiro estamos ganhando ou como bem sucedidos estamos.
Bem antes, eu comecei observar ao meu redor e percebi como estava difundida uma angústia emocional subjacente. Primeiro, observei com os estudantes das instituições da Ivy League[2] onde eu lecionava. Eles estavam entre os melhores, mais brilhantes e frequentemente os mais belos, ainda assim eles estavam cercados por profundos sentimentos de indignidade, de fealdade por dentro e por fora. Eles estavam sobrecarregados por todas as possibilidades que os antecederam e eram incapazes de exercer uma agência significativa. Na maioria das vezes, estavam deprimidos sem saber o porquê, drogas — ilegais ou prescritas — não resolviam o problema, e existiam mais tentativas de suicídio do que alguém cuidava de falar a respeito.
Desde o primeiro momento que escutei as histórias dos estudantes, seja no meu escritório, no sofá da minha casa ou em um quarto de hospital, o que eu ouvi foram vozes com profunda falta de autoestima. E quando eu escutei meus pares, a geração do baby boomers[3] que se destacaram e deixaram sua marca, eu ouvi narrativas similares. Eu ouvi pessoas falarem sobre um profundo sentimento de inadequação, de não ser “suficiente”, mesmo quando elas não podiam definir o que seria suficiente. Eu ouvi e ouço sentimentos de vergonha, culpa, inferioridade. Finalmente, depois de ouvir essas confissões de autoaversão e autodesconfiança, fui compelida para enfrentar a implícita realidade desses testemunhos. Eu queria fazer algo para encontrar a explicação e a solução. Repetidas vezes em todas as minhas pesquisas, retornei ao tema da autoestima.
Desde a escravidão até o momento presente, coletivamente os afro-americanos têm lutado com a questão da autoestima. Uma das causas crescentes de alarme tem sido a intensificação da baixa autoestima em face de todo tipo de oportunidades que antes não existiam para nossos ancestrais. Embora o racismo e a supremacia branca ainda estejam na ordem do dia, eles não são determinantes poderosos em nossas vidas como eram antes.[4] Olhando para minha família, eu tenho frequentemente me perguntado por que meu irmão, minhas cinco irmãs e eu parecíamos estar mais frágeis psicologicamente que os nossos pais. Como em muitas famílias negras do Sul, onde educação tem sido encorajada, nós todos estudamos, nos instruímos, nos graduamos, ganhamos dinheiro. E apesar de alcançarmos um nível de privilégio material que nossos pais não conheceram, ganho material não tem servido para mudar o nosso autoconceito básico. Repedidas vezes em nossas conversas nós retornamos para a questão da autoestima.
Nenhum de nós imagina que podemos ir ao médico, que nos dará uma prescrição para cura, sem primeiro nos examinar para encontrar as raízes de nosso problema. Em Rock my Soul: Black People and Self Esteem esse é o caminho que eu tomo: exame rigoroso da questão concluindo com algumas sugestões do que nós podemos fazer.
Em Rock my Soul, eu me baseio no trabalho do psicólogo Nathaniel Branden[5] para fornecer uma definição eficaz de autoestima que resistiu ao teste do tempo. Ele explica: “A autoestima, plenamente realizada, é a experiência de que estamos aptos para vida e para as exigências da vida … Autoestima é a confiança em nossa capacidade de pensar; confiança em nossa habilidade de lidar com desafios básicos da vida; e confiança em nosso direito de sermos bem-sucedidos e felizes; a sensação de que temos valor, dignidade e o direito de afirmar nossas necessidades e desejos, alcançar nossas metas, e desfrutar os frutos dos nossos esforços.”
Branden identificou seis pilares da autoestima: integridade pessoal, autoaceitação, autorresponsabilidade, autoafirmação, viver conscientemente e viver com propósito. Sem autoestima as pessoas começam a perder o senso de agência. Elas se sentem impotentes. Elas sentem que apenas podem ser vítimas. A necessidade de autoestima nunca desaparece. E nunca é demasiado tarde para adquirimos uma autoestima saudável, necessária para possuirmos uma vida plena.
Nós, pessoas negras, temos sido relutantes em romper com a nossa negação e lidar com a verdade de que a baixa autoestima incapacitante atingiu proporções epidêmicas em nossas vidas. Essa relutância justifica-se na ideia de que o diagnóstico não parece profundo suficiente. Repetidas vezes em livros e artigos escritos por teóricos negros, os autores detalham uma longa lista de doenças que sugere uma crise de autoestima, e depois esses autores recusam enxergar em nosso sofrimento a conexão em primeiro lugar com a falta da autoestima, porque como um autor colocou, isso é “simplista demais.” O diagnóstico pode ser simples, mas obviamente não tem sido simples para nós criarmos bases duradouras para construção de uma autoestima saudável para a vida negra, se fosse simples assim não haveria crise. Com frequência, focamos tanto em como os outros ferem a nossa autoestima que ignoramos as feridas que são autoinfligidas. Para cuidar dessas feridas, aprender abraçar o bem estar emocional sem autossabotagem, nós precisamos prestar mais atenção para o tema do autorrespeito. Nós precisamos destacar o tema da autoestima.
Embora possamos ter tido um período prolongado de silêncio, talvez mesmo de negação, quando éramos incapazes de falar abertamente e honestamente sobre a crise de como enxergarmos a nós mesmos e os outros e como somos vistos, nós pessoas negras sabemos que nossa autoestima coletiva ferida não foi curada. Nós sabemos que estamos com dor. E é apenas enfrentando a dor que poderemos fazê-la ir embora.
Referência
hooks, bell. “The inside part: self-esteem today:” In: Rock my soul: Black People and Self-Esteem. New York: Washington Square Press, 2003, p. ix- xiii.
[1] Nota da tradutora. Nos Estados Unidos, esse tipo de questionamento emerge a partir da década de 1960, durante o contexto de implantação das chamadas ações afirmativas — um conjunto de políticas públicas e de organizações da sociedade civil em torno de emprego e educação — , cujo objetivo é corrigir desigualdades historicamente construídas baseadas nas diferenças de raça, gênero, credo e nacionalidade. As ações afirmativas são frutos das lutas dos movimentos pelos direitos civis lideradas pelo Movimento Negro.
[2] Nota da tradutora: A Ivy League é um grupo formado pelas oito das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Universidade da Pensilvânia, Princeton e Yale
[3] Nota da tradutora: Baby boomer é uma pessoa nascida entre 1946 e 1964 na Europa, sobretudo na Grã Bretanha e França, Estados Unidos, Canadá ou Austrália. Nesses países, depois da Segunda Guerra Mundial, ocorreu um súbito aumento de natalidade.
[4] Nota da tradutora: Dado o contexto dos Estados Unidos, é importante situar o que bell hooks está chamando de “determinante”. Entre 1876 e 1965, nos estados do Sul existiram as chamadas “Jim Crow”, leis que oficializavam o sistema de segregação racial em escolas públicas, locais e transportes públicos, restaurantes, bebedouros para negros e brancos, entre outras práticas segregacionistas. Ainda que nos estados do Norte não tenham existido as “leis Jim Crow”, nessa região também ocorreram atos de segregação institucional. A luta pelos direitos civis dos anos de 1950 e 1960 liderada pelo Movimento Negro colocou fim nas legislações segregacionistas, cujo desdobramento foi a implantação de ações afirmativas para população negra.
[5] Nota da tradutora: Nataniel Branden (1930–2014) foi um psicólogo canadense estadunidense que, a partir da década de 1960, ficou conhecido pelos seus trabalhos sobre autoestima. A definição utilizada por bell hooks encontra-se no livro “The Six Pillars of Self-Esteem (1995). No Brasil o livro foi traduzido, em 2002, pela editora Saraiva sob o título Autoestima e os seus seis pilares. A abordagem de Branden sobre autoestima enfatiza a importância das práticas geradas internamente para a melhoria e manutenção da autoestima. Por esta razão, o autor expressava falta de entusiasmo sobre os ensinamentos do “movimento da autoestima”, apesar dele ser identificado inúmeras vezes como o criador desse movimento.