Conto
Ninguém falou da pandemia
Janete e Cláudia são irmãs. Mulheres pretas crescidas na Zona Leste de São Paulo. Na adolescência começaram a brigar entre elas feito cão e gato. Tudo era motivo de peleja. Qualquer pingo d’água fazia o copo derramar. Por isso ter que dividir o quarto uma com a outra, era causa de sofrimento para ambas. Não por acaso, ao dormir Cláudia tinha um sonho recorrente: ela se via sozinha deitada em uma cama imensa. Às vezes, nesses sonhos aparecia até uma escrivaninha. Tudo só para ela.
À proporção que elas foram crescendo, a vida foi mostrando que não dá sopa para mulher preta e pobre. As garotas foram aprendendo que precisavam remar para o mesmo lado. Conforme foram abrindo mão de suas proteções emocionais belicosas, a amizade entre elas foi adquirindo contornos. Quando Janete, aos 16 anos, engravidou foi Cláudia quem pulou na frente do pai que, furioso pela notícia da gravidez, foi pra cima da primogênita. A mais nova não apenas entrou na frente dele, como foi ela quem cuidou do bebê para que Janete pudesse terminar o Ensino Médio. A cumplicidade entre as irmãs foi se estabelecendo mesmo na diferença. Janete evangélica. Cláudia agnóstica. De vez em quando, elas se desentediam. Janete se irritava com a presunção intelectual da irmã. Cláudia bufava com a arrogância religiosa de Janete.
Nas eleições presidências de 2018, essas diferenças se expressaram em suas escolhas políticas. Janete votou no Bolsonaro. Cláudia fez campanha para o Haddad. Janete falava horrorizada sobre o Kit Gay. Cláudia defendia os programas sociais do PT. A disputa eleitoral estremeceu a relação, mas elas continuaram se falando. Todavia, o ressentimento ficou ali só esperando a hora de ser requentado.
Em 2019, o início do governo Bolsonaro forneceu temperatura certa para que os ódios reacenderem. Cada fraquejada do governo amplificava em Cláudia a sensação de ter sido traída pela irmã. Cada crítica de Cláudia afetava Janete como uma dupla humilhação. Elas se apegaram a esses sentimentos, misturando-os com os fantasmas da infância. O rompimento foi inevitável. Seguiram separadas e magoadas.
Março de 2020. Com os efeitos da pandemia no Brasil, Cláudia e Janete perdem seus empregos. Voltam para casa do pai. A pequena casa paterna parece não ter espaço para o volume do rancor trazido por cada uma delas. Tudo é sufocante. Medo da morte. Desemprego. Angústia. Raiva da irmã.
Na sexta-feira, 22 de maio, depois de assistirem ao vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro, as irmãs choram. A vergonha embala as dores. Vergonha de admitir o voto equivocado, vergonha de ter permitido que algo tão virulento as separassem, vergonha de pedir desculpas. A cada lágrima, elas vão entendendo que estão ali na mesma casa como sempre estiveram: elas por elas mesmas. Na tela da televisão, havia vinte homens brancos sendo servidos por um homem negro. E ninguém falou da pandemia.
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Esse texto é fruto de conversas partilhadas, sugestões e revisões de Aaron Jaekel, Ana Flávia Gerhardt, Anderson de Souza, Camila Matheus da Silva , Cesar Augusto Mendes Cruz, Daniela Vieira, Márcia Cristina Rogério de Almeira e Terra Johari.